Resumo (Análise) - O Outro pé da Sereia

Introdução
A África foi, por muito tempo, representada no imaginário do homem ocidental como um continente misterioso, mítico, vasto e bárbaro. Essa imagem, construída a partir de uma ótica eurocêntrica, tem sido perpetuada não apenas na literatura, e na mídia em geral, como também nos bancos escolares. A hegemonia do sujeito branco e ocidental formulou imagens de um “outro” africano que se opõe à imagem que tinha de si mesmo. Essas representações não foram elaboradas em um processo de mão única. Os africanos, evidentemente, também elaboraram suas
interpretações e significações para o que vivenciavam ao entrar em contato com os europeus. A antinomia identidade/alteridade está, portanto, pautada em representações recíprocas, em que a troca de olhares sobre o outro e sobre a própria identidade é um instrumento dinâmico, em constante ressignificação e com múltiplas variáveis.

A mudança de perspectiva em relação ao continente africano teve início um pouco antes das lutas pelas independências, nos anos 1950 e 1960, estendendo-se até o final da década de 1970. A segunda metade do século XX assistiu a uma espécie de revolução nos estudos sobre a África, em parte pela necessidade de construir “histórias nacionais” para cada região "inventada" pelos europeus e reinventada pelos africanos, em parte porque foram os intelectuais a perceberem a importância da elaboração das identidades africanas dentro do continente e perante o mundo. O retorno ao passado em busca de legitimação, de mitos fundadores e heróis passou a ser uma forma de engendrar essas novas identidades e a literatura pós-colonial provou ser profícua nesse aspecto.
Este trabalho busca analisar a via escolhida por Mia Couto em O outro pé da sereia (2006), romance que entrelaça história e ficção, estabelece elos intertextuais, remete à tradição e, ao mesmo tempo, lança à África, e a Moçambique, em particular, um olhar absolutamente contemporâneo.
Em O outro pé da sereia, não apenas o choque entre culturas é representado, mas também, e talvez primordialmente, os arquétipos sobre o homem africano. O autor vai além de questões político-sociais contemporâneas, partindo da premissa de que é preciso que o africano reencontre suas origens, suas tradições, seus cultos e suas crenças.
1. Entre a ficção e a história: os meandros do insólito
A tessitura de O outro pé da sereia é intertextual e o romance apresenta duas histórias paralelas. A primeira relata como Mwadia Malunga e seu marido, Zero Madzero, encontram uma imagem de Nossa Senhora abandonada nas imediações do lugar em que vivem; significativamente denominado Antigamente. Mwadia é encarregada de ir a Vila Longe, onde vive a sua família, para providenciar um destino à imagem. Nesta história de retorno à casa natal, vários personagens nos são apresentados, bem como seus dramas pessoais. A segunda é uma ficção histórica, que, em capítulos alternados, conta como a referida imagem de Nossa Senhora chegou a Moçambique, trazida pelo jesuíta D. Gonçalo da Silveira em uma nau portuguesa, em 1560. A imagem, benzida pelo papa, era destinada ao imperador do mítico reino de Monomotapa, a fim de catequizar a região.
Os acontecimentos dessa viagem, que em certa medida refletem problemas contemporâneos, envolvem, ainda, o conflito pessoal do jovem sacerdote Manuel Antunes, que será seduzido pelos ritos e ritmos africanos, e a relação de um escravo, Nsundi, com uma dama portuguesa e sua aia de origem indiana.
Além do evidente diálogo com a historiografia, o romance apresenta elementos do Realismo Mágico. As manifestações do insólito ocorrem nos dois planos narrativos, passado e presente.
No nível da narrativa histórica, o insólito está associado à crise identitária e ao choque entre culturas, que as formas diferenciadas de devoção à imagem da Virgem emblematizam.
Ao ver a imagem da santa tombar no lodo, durante o carregamento da nau, o escravo Nimi Nsundi se atira às águas, evitando que fosse tragada. Mais tarde, ao ver D. Gonçalo da Silveira limpando os pés da santa, diz que ela não havia escorregado; que ela queria ficar ali, no pântano. A devoção do escravo à Santa comove o missionário, incapaz de compreender a quem Nsundi realmente cultuava.
Em quimbundo, as sereias são chamadas de “ianda”, no singular “kianda”. As águas têm significado especial nas manifestações culturais africanas por remeterem aos mitos de fundação que regem as múltiplas formas de vida.
No romance, o escravo Nsundi envia entrega a Dia Kumari uma carta, na qual relata que, quando se ajoelha diante da Virgem, ele presta culto a Kianda:
Critica-me porque aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam isso de baptismo. Eu chamo de outra maneira. Eu digo que estou entrando em casa de Kianda.A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem. (...) Acontecia-me a mim o inverso do que lhe sucedeu a si, Dia Kumari. As minhas mãos se juntavam e pegavam fogo. Em lugar de dedos me ardiam dez pequenas labaredas. Era então que outras mãos, feitas de água, se aconchegavam nas minhas e aplacavam aquela fogueira. Essas mãos eram
da Santa. E ela me segredava: __ Este é o tempo da água. Era a voz da Santa que me percorria por dentro. A voz tomava posse de mim. E agora que lhe escrevi a carta, vejo que esta letra não me pertence, é letra de mulher. Meus pulsos delgados se recolhem ao peso de um cansaço de séculos. Meus dedos não têm gesto, meus dedos são o próprio gesto. Eu sou a Santa. (COUTO, 2006, p.114)

O insólito não surge apenas como manifestação da crença, mas também pela dissolução da fé mediante o reconhecimento da disparidade entre os princípios disseminados pelos religiosos e a sua prática. Assim como o escravo, Padre Antunes, que acompanha D. Gonçalo em sua missão, experimenta um contato com a santa que é inconcebível segundo a visão cristã. Sonha com uma mulher despedindo-se dele na berna do rio Mandovi. Ela começa a desvencilhar-se de suas roupas, dizendo-lhe que é deste modo que ele há de lembrar-se dela. Angustiado, o padre acorda e, ao dormir novamente, torna a sonhar com a mulher, que lhe diz para tocá-la, pois ela o fará renascer.
No sonho, ele afunda, para ser devolvido à tona pela estranha mulher, que, finalmente, se apresenta como Kianda, embora ainda personificando Nossa Senhora. O sonho é o início de uma crise religiosa e identitária.
Padre Antunes decidira ser padre por conta de um amor proibido e abdica da batina por perceber-se um homem diferente, após o contato com os africanos e a paixão súbita pela indiana Dia, também passageira da nau Nossa Senhora da Ajuda. Os indícios dessa mudança espalham-se pelo romance antes de sua enunciação final, como comprova esta passagem: “Foi então que reparou que estava com as mãos sujas de tinta. Com as mãos negras, ele reentrou no camarote. E com as mãos negras ele se abandonou no rio do sonho” (COUTO, 2006, p.62). Assim é que Padre Antunes, desiludido com as obviedades de um cristianismo parcial, começa a sofrer uma mutação de raça:
Até 4 de janeiro, data do embarque em Goa, ele era branco, filho e neto de portugueses. No dia 5 de janeiro, começara a ficar negro. Depois de apagar um pequeno incêndio em seu camarote, contemplou as suas mãos obscurecendo. Mas agora era a pele inteira que lhe escurecia, os seus cabelos se encrespavam. Não lhe restava dúvida: ele se convertia num negro.
__ Estou transitando de raça, D. Gonçalo. E o pior é que estou gostando mais dessa travessia do que de toda a restante viagem. (COUTO, 2006, p.164) Essas duas passagens do romance evocam experiências idênticas de personagens que se encontram no plano da narrativa no presente.
Desde o primeiro capítulo, a relação entre Mwadia e Zero delineia-se atípica aos olhos do leitor. Ela vive com um homem silencioso, que dizia estar “a esquecer-se” (p.14). Num certo dia, Zero encontra algo que ele descreve como uma estrela que havia caído do céu e, inclusive, queimara-lhe as mãos ao enterrá-la em seu quintal. A suposta estrela nada mais é que uma aeronave em missão de reconhecimento e espionagem que caíra, que, aos olhos do pastor de animais, assumira a forma daquilo que mais se assemelhava à bola de fogo em que se tornara.
Após uma conversa com a mulher, ambos decidem desenterrar a estrela e levá-la para ser enterrada junto ao rio, no lugar do bosque sagrado. Mwadia sabe aquilo não é uma estrela, mas os restos do que ela chama de “desembarcação”. No entanto, não deseja desmentir o marido. Naquela noite, Zero sonha que suas mãos se juntavam como duas chamas numa única fogueira, que, em lugar dos dedos, lhe doíam dez pequenas labaredas, até que mãos feitas de água se aproximaram das dele, aplacando a sua dor. Como sonâmbulo, ele repete as palavras da mulher que lhe aparece no
sonho.
O insólito da situação se institui, portanto, a partir da duplicação, no plano do mundo contemporâneo, de algo acontecido no plano da ficção histórica.
Quando Mwadia e Zero decidem que ela deve ir à Vila Longe para encontrar um local onde colocar a santa, este sugere que consultem o adivinho Lázaro Vivo, em busca de permissão para penetrar no local onde a estrela será enterrada. A mulher se surpreende ao deparar-se com a “nova versão” do nyanga, que já não portava mais as longas tranças de antes, nem as costumeiras roupas pretas. Ao invés disso, ela encontra um homem de cabelo curto e penteado de risca, usando uma blusa esportiva, e portando um celular. Lázaro vinha de Vila Longe, onde fora buscar uma tabuleta para pôr na porta de seu “estabelecimento”.
O modo com que Mia configura a personagem é uma visão irônica da prontidão em que a África se atira em direção à idéia de globalização, pois o adivinho anuncia logo aos recémchegados:
“__ Eu já estou no futuro. Quando chegar aqui a rede, já posso ser contactado para serviços internacionais. Entendem, meus amigos?” (COUTO, 2006, p.24).
Assim como Melquíades, em Cem anos de solidão, Lázaro Vivo tem, no universo ficcional, o estatuto do detentor do conhecimento. Se por um lado, Mia Couto explora a ansiedade da personagem pelo novo, por outro deixa entrever seu parentesco com os velhos xamãs, os sacerdotes conhecedores dos mitos, detentores de poderes ocultos e capazes de comunicar-se com os espíritos.
Em uma entrevista concedida a Celina Martins (2002), Mia Couto expôs a sua visão sobre o choque de culturas em África:
Esse encontro de culturas é sempre, em princípio, traumático, porque não se trata de um encontro, é uma incursão abusiva. O que chega a estas culturas africanas não são as culturas européias. São emanações, representações simbólicas por via da tecnologia. Mantemos ainda a imagem dos primeiros encontros dos descobridores europeus que trocavam umas bugigangas que reluziam diante dos olhos dos africanos. Estamos mais ou menos repetindo esse modelo de relação. Não existe globalização, o que existe é exportação e imposição de sinais, nem sequer são
modelos, o modelo fica junto do produtor, os africanos consomem passivamente aqueles sinais mais brilhantes e apelativos.
Nesse sentido, Lázaro personifica, no mundo contemporâneo, e no âmbito do consumo, a repetição de uma relação de dominação que se oculta sob a égide da globalização. É um homem dividido entre as suas crenças e os possíveis benefícios da tecnologia e da modernidade. O romance deixa entrever, no entanto, que seus poderes são reais. É através de Lázaro que o romance introduz pela primeira vez os rumores acerca da morte de Zero.
Após enterrar “a estrela”, Zero descobre a estátua da Virgem, bem como os pertences de Gonçalo da Silveira, que com ela estavam enterrados, e reconhece nela a mulher do sonho. Ao levarem o achado até o adivinho, Mwadia percebe que Zero está sangrando. Para o adivinho, Zero tinha despertado a alma do morto, pois uma pessoa assassinada não descansa como os mortos naturais; vira um gnozi. Dada a impossibilidade, até então não explicada, de Zero voltar a Vila
Longe, fica decidido que Mwadia há de fazê-lo. Ante as muitas dúvidas de Mwadia, Lázaro afirma que ela ficara muito tempo no seminário e acabara por perder o espírito das coisas de seu povo, distanciando-se da imagem de uma africana.
Ao que ela responde que há muitos modos de ser africana, perguntando-lhe se ele sabe quem eles são. Nesse ponto, a questão da identidade é retomada, passando a entrelaçar-se com o tema da viagem, resgatando, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.
Vila Longe se revela como a Macondo de Gabriel García Márquez, elevando a realidade à categoria onírica, sintetizando os mais diversos elementos: a história, a natureza, os problemas sociais e políticos, a vida quotidiana, a morte, o amor, as forças sobrenaturais, o humor e o lirismo.
Em Vila Longe, ela se reencontra com o seu passado, com a mãe que sempre se lamentara de sua partida; com o padrasto que vivia em “trânsito nominal” por acreditar que, ao trocar de nome anualmente, acabaria por viver mais; com as crendices de seu povo e com a novidade da chegada de um casal de americanos, que, pretensamente, viria estudar antigas histórias de escravos.
As relações atribuladas com Constança, sua mãe, que atribui à sua partida a sua crescente abundância de carnes, entabulam uma reaproximação dolorosa, permeada de descobertas, como a morte de Tia Luzmina, irmã de seu padrasto.
À Mwadia cabe a tarefa de pendurar a última fotografia da tia morta na "parede dos ausentes"; no corredor, onde todos os defuntos da família estavam reunidos, em um tipo de memorial mórbido. Estranhamente, na casa de uma família "que nunca chora", um balde é posto junto à parede, para recolher as lágrimas dos mortos (COUTO, 2006, p.74).
Assim como em Macondo, o insólito é incorporado ao quotidiano das personagens. Os mortos de Vila Longe faleciam "como era devido naquele lugar: sem nunca chegar a morrer" (COUTO, 2006, p.77). "Almas acesas, brilhando entre sombras, suspiros e silêncios", eles pairavam entre os vivos, dando-se o luxo de envelhecer nas fotografias.
O insólito não está presente apenas no convívio entre vivos e mortos. Assim como no passado cabe a Padre Antunes passar pela mutação de raça, convertendo-se de branco em negro (COUTO, 2006, p.164), no presente, os olhos de Jesustino, goês, padrasto de Mwadia, começam a clarear e, ante o espanto da enteada, ele afirma estar mudando de raça (COUTO, 2006, p.95).
Mutação semelhante ocorrera com Constança após a morte do primeiro marido, pois quando decidiu ficar instantaneamente velha, com a força de seu desejo, começaram a surgir-lhe rugas e cabelos brancos (COUTO, 2006, p.101).
O romance é construído de forma a despertar no leitor uma sensação de indefinição e incapacidade de separar o real do irreal, como, por exemplo, na passagem em que Mwadia vai à alfaiataria com o padrasto, que se recusa a entrar, dizendo que havia jurado, há muitos anos, que jamais entraria no estabelecimento novamente, "nem vivo", pois fora ali que, um dia, ele morrera
(COUTO, 2006, p.125).
A tessitura do discurso é construída de modo a alimentar a incerteza sobre aquilo que encerra. A convivência entre o insólito e o cotidiano é ancorada pela passividade do narrador e da maioria das personagens, que não se questionam sobre o caráter incomum dos acontecimentos por eles vivenciados. A exceção fica por conta da vaga percepção de Mwadia e da fala de Mestre Arcanjo, o barbeiro.
Em suas deambulações pela cidade, à cata de suas memórias, Mwadia percebe situações que, em outro contexto, seriam interpretadas como anormais: cães assustados à sua passagem; pessoas cujo reflexo ela é incapaz de ver no espelho, bem como a sensação de irrealidade ao contemplar o padrasto que a esperava do lado de fora da alfaiataria.
Digna de nota, no entanto, é a sua surpresa ao ouvir o chefe da estação afirmar que ela estivera ali na semana anterior, quando partira há tantos anos. É um dos breves momentos em que o insólito desperta uma reação por parte das personagens.
A chegada de Benjamin Southman e Rosie acaba por tornar-se um acontecimento, para o qual os habitantes de Vila Longe se preparam, visando ao lucro. Mwadia, mesmo contra a vontade, acaba por fazer parte de seus planos. A princípio, pedem-lhe que simule um transe para impressionar o americano, que deseja descobrir quem foram seus ancestrais em África. Para tanto, Mwadia começa a ler os documentos que há na caixa de D. Gonçalo da Silveira, que Zero encontrara com a imagem da santa. Logo, Mwadia passa o transe passa a ser real, o que acaba por
assustá-la.
A presença dos americanos – na realidade, afro-americanos – traz ao romance um tom de comicidade, uma vez que Mia Couto retrata com extrema ironia a ansiedade do povo em inventar uma África ao gosto do estrangeiro. Nas discussões que se sucedem, Mia Couto deixa entrever algumas questões que lhe parecem cruciais, como, por exemplo, um desfraldar de bandeiras apoiado na questão da negritude, na busca de uma África mítica, que, de certa forma, ignora a realidade da
Moçambique contemporânea, fruto de uma intensa miscigenação. O desejo patético do afroamericano que quer ser africano é ironizado no diálogo a seguir:
__ O que se passa, mano, uma tontura?
__ Eu só queria beijar a nossa mãe...
__ Qual mãe?
__ Queria beijar o chão de África...
__ Ora o chão, pois o chão de África, mas veja, meu brada, o melhor chão para ser beijado é noutro local que lhe vou indicar, este chão, aqui, é melhor não... (COUTO, 2006, p.138)
A relação que o americano Benjamin estabelece com a África é construída através do conceito intermediário de raça; conceito este que ele adquiriu de uma matriz cultural euroamericana.
Em conseqüência, suas respostas às questões da identidade africana encontram-se enraizadas na visão arquetípica e romântica que foi o ponto de partida para os africanos que assumiram a bandeira de uma nacionalidade negra pan-africana. Ao satirizá-lo, Mia Couto tenta encontrar o espaço de construção de uma identidade moçambicana.
Mestre Arcanjo, o barbeiro, é o único a se recusar a participar das encenações para os americanos e suas palavras pontilham todo o romance, como ditados oriundos de uma sabedoria primitiva. É ele quem afirma que é necessário “esquecer para ter passado, mentir para ter destino” (COUTO, 2006, p.64).
O símbolo desse esquecimento é a “árvore das voltas”, o embondeiro, pois quem rodasse três vezes em seu redor perdia a memória. Ao contrário dos habitantes de Macondo, que, devido à peste da insônia, tinham de lutar contra as evasões da memória, os habitantes de Vila Longe ansiavam pelo esquecimento.
No último dia de Mwadia em Vila Longe, ele a aconselha a ir embora, perguntando-lhe se nunca ouvira falar de terras que foram erradicadas, que deixaram de constar.
Por fim, Mwadia, finalmente, é confrontada com a morte do marido, que, por tanto tempo, se recusara a aceitar. Vindo a descobrir que fora o padrasto quem o assassinara, ela retorna a
Antigamente, levando o retrato de Zero que a mãe lhe dera para que o pendurasse na parede dos ausentes.
À sua chegada, aguarda-lhe o marido morto, e fica-lhe a certeza de que Vila Longe e seus habitantes há muito haviam deixado de existir:
Como aceitar que Vila Longe já não tinha gente, que a maioria morreu e os restantes se foram? Como aceitar que a guerra, a doença, a fome tudo se havia ravado com garras de abutre sobre a pequena povoação? Vila Longe cansara-se de ser mapa. Restavam-lhe as linhas ténues da memória, com demasiadas campas e nenhuns viventes. (COUTO, 2006, p.330)
Simbolicamente, ela pendura o retrato do marido na parede dos ausentes que há dentro de sua própria alma, em resignada aceitação, e dirige-se para o rio.
A tessitura do romance contém, portanto, uma dialética entre a memória e o esquecimento, entre o real e o fantástico, entre a anamnese da história e a amnésia histórica. No vértice dessas tensões, está um escritor que, ao contrário de suas personagens, se recusa a andar em torno da árvore do esquecimento.
A construir um mundo ficcional em que, como afirma o barbeiro de Vila Longe, apenas a História morre e os mortos não se vão, Mia Couto reafirma que só o confronto com esse passado que, por vezes, somos incitados a esquecer, permitirá que venhamos, finalmente, vir a descobrir quem somos.

Fonte: http://www.abralic.org

3 comentários:

Shirley Carreira disse...

Este artigo é meu. Não me importo que o reproduzam, desde que indiquem a autoria. Dra. Shirley Carreira -UNIABEU

Unknown disse...

Uau!!! Que bacana seu artigo, muito ajudou com meus estudos e as analogias expostas no texto referenciando a obra de Garcia Marquês muito me seduziu.
Adorei!!

Unknown disse...

Uau!!! Que bacana seu artigo, muito ajudou com meus estudos e as analogias expostas no texto referenciando a obra de Garcia Marquês muito me seduziu.
Adorei!!

Postar um comentário

 
Guia dos Vestibulandos © 2010 | Designed by Chica Blogger | Back to top